27 de abr. de 2011

Itália e França querem dificultar livre circulação

Berlusconi e Sarkozy pedem mudança no tratado de Schengen, que libera trânsito no bloco europeu," para conter imigrantes da África"



Michel Euler/AP
Michel Euler/AP
 Imigrante tunisiano exibe camisa da seleção francesa em uma praça de Paris
O presidente da França e o premiê da Itália, Nicolas Sarkozy e Silvio Berlusconi, propuseram ontem a revisão do tratado europeu de livre circulação de pessoas e a volta das fronteiras nacionais. Em Roma, os governos de França e Itália tentaram dar uma demonstração de que superaram suas diferenças dos últimos dias diante do fluxo de imigrantes da Tunísia e Líbia.
Mais de 500 mil pessoas deixaram esses países para outras nações africanas, fugindo dos conflitos. Uma porção bem menor - de 30 mil - atravessou o Mar Mediterrâneo em pequenos barcos e chegou no sul da Itália, causando um terremoto politico na UE.
Diante do fluxo de imigrantes na direção da Itália, o governo de Roma tinha pedido que o restante da Europa mostrasse solidariedade e recebesse parte dos imigrantes que chegaram às suas costas. Mas a UE rejeitou a ajuda e a França - destino de 90% dos imigrantes - fechou suas fronteiras.
Ao mesmo tempo, na fronteira entre os dois países, onde a reportagem do Estado esteve ontem, centenas de imigrantes que estão bloqueados pelas autoridades francesas e italianas foram simplesmente ignorados e mantidos num limbo legal e psicológico.
Tanto Berlusconi como Sarkozy estão reféns dos votos conservadores para as eleições de 2012 em ambos os lados da fronteira. E foi pensando nesse eleitorado que os líderes tomaram suas decisões ontem. Como o Estado antecipou, Sarkozy e Berlusconi encaminharam uma carta para a Comissão Europeia pedindo que o tratado de livre circulação de pessoas dentro do bloco seja revisto. Esta é a primeira vez que governos pedem oficialmente a revisão de um dos pilares da existência da UE.
A meta, solicitada pela França, é a de colocar uma cláusula que permitiria que governos da UE voltassem a controlar suas fronteiras internas em casos de "situações de emergência", suspendendo a livre circulação de pessoas, um dos pilares da UE. Para agradar a Roma, o pedido também insiste na necessidade de policiamento das fronteiras externas da UE para melhor controlar o fluxo de imigrantes.
"Queremos que o acordo (de livre circulação) continue vivo", afirmou o francês. "Mas para isso precisa ser reformado. Não somos contra o acordo. Mas ele precisa ser modificado diante da situação excepcional", afirmou Berlusconi.
Frustração. Na prática, Paris e Roma apenas adiaram uma solução para a questão e frustraram os imigrantes que aguardavam na fronteira o resultado da reunião de cúpula. Berlusconi chegou a admitir que não havia como pedir mais abertura por parte da França. "Não podemos acusar a França de nada. Eles recebem 50 mil refugiados por ano e nós apenas 10 mil", disse.
Durante todo o dia de ontem, mais de 150 imigrantes passaram o dia na pequena estação de trem de Ventimiglia, na costa italiana, à espera da autorização para viajar para a França, Bélgica e outros países para finalmente se reunir com parentes ou pelo menos estar em um país no qual falam a língua. Todos cruzaram o Mediterrâneo em barcos e chegaram ilegalmente à Ilha de Lampedusa. Mas, quando fizeram a travessia, ninguém pretendia ficar na Itália e muito menos em centros de detenção.
Ontem, viam a reunião como a chance de dar um fim a semanas de indefinições. Alguns percorriam bancas de jornais para saber do resultado da reunião em Roma, perguntando a cada cinco minutos aos jornalistas e fazendo as contas de qual trem poderiam pegar para ir a Marselha, Nice, Lyon e Paris.
O resultado da cúpula foi uma ducha de água fria. "Quem achava que tinha chegado ao paraíso se enganou", afirmou ao Estado o imigrante tunisiano, Murad Ibrahim, pai de três crianças que ficaram em seu país. "Chegamos à Europa. Mas não chegamos ao local onde planejávamos transformar nossos sonhos em realidade. O que é que Sarkozy e Berlusconi fizeram? Almoçaram, tomaram vinho e nos chutaram de novo. Falam que querem a democracia nos países árabes. Mas não estão dispostos a nos tratar como irmãos", disse.
"Onde está a humanidade de Sarkozy e de sua mulher italiana (Carla Bruni)?", questionou Mahmoud Chauzy, estudante de direito na Tunísia. "Para cruzar a fronteira para a França, Sarkozy exige que tenhamos uma renda de 2 mil por mês, residência fixa e um contato na França. Será que ele não sabe que estamos em guerra?"
"A juventude árabe perdeu a fé no projeto europeu de democracia e liberdade. Dizem que precisamos nos libertar de nossos ditadores. Mas quando chegamos aqui fugindo da morte, somos recebidos por policiais armados que exigem que voltemos a nossos países de origem", alertou Chauzy.
A frustração logo deu lugar à tensão na pequena cidade. Um grupo de imigrantes que tomava café num bar diante da estação de trem se recusou a pagar, alegando que não tinham dinheiro, Um início de confusão foi registrado. A polícia destacou todo um batalhão para garantir a segurança na região.
PARA ENTENDER
Pacto permite livre circulação entre países
O Acordo de Schengen é uma convenção firmada entre países europeus que permite a livre circulação de pessoas em várias nações do continente. Ao todo, são signatários do tratado 22 membros da União Europeia (Bulgária, Romênia e Chipre ainda aguardam sinal verde para entrar) e mais Islândia, Noruega e Suíça - Grã-Bretanha e Irlanda optaram por ficar de fora do acordo e apenas cooperam em matéria penal e judicial com os demais. Os países que aderiram ao acordo, porém, se comprometeram a compensar a ausência de controle nas fronteiras internas com um aumento da fiscalização da entrada de imigrantes. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, e o primeiro-ministro italiano, Sílvio Berlusconi, defendem a flexibilização do tratado, para evitar a onda migratória, e o restabelecimento temporário do controle fronteiriço. Um eventual desaparecimento do "espaço Schengen", no entanto, é pouco provável, pois tornaria necessária também a apresentação de passaporte nas fronteiras, cujos postos de controle, na maioria dos casos, já estão desativados. 
Jamil Chade - O Estado de S.Paulo

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