Você já teve litost?
Já escrevi que cada idioma tem palavras exclusivas, sem correspondentes exatas em nenhuma outra língua, para expressar determinados sentimentos que são universais, ou seja, que todos os povos têm, mas que não sabem como caracterizar. Citei como exemplo o termo “saudade”, essa maneira característica do lusitano (e, por conseqüência, do brasileiro também) de lembrar de fatos agradáveis ou de pessoas especiais às quais se dedica estima.
Não conheço tantas línguas assim para citar outros casos. Posso mencionar, contudo, a palavra “crise” em chinês. Nesse idioma, ela é grafada com a utilização de dois ideogramas, com significados diferentes um do outro, mas que unidos formam a idéia de uma situação crítica em nossa vida. Um desses caracteres significa “perigo”. O outro, todavia, tem o significado de “oportunidade”. Com a reunião de ambos fica explicitada a maneira como o chinês interpreta uma crise.
Milan Kundera, todavia, em seu “O livro do riso e do esquecimento”, traz à baila outra palavra peculiar, que só existe em sua língua materna, embora expressando um sentimento que todos já tivemos, temos ou teremos. E qual é ele? É a “litost”. Você já a teve? Eu, volta e meia, sou confrontado com esse estranho sentimento que o escritor checo caracteriza com tanta maestria. Mas… deixemos que ele mesmo explique o que é: “Litost é uma palavra checa intraduzível em outras línguas. Sua primeira sílaba, que se pronuncia de maneira longa e acentuada, lembra o lamento de um cachorro abandonado. Para o sentido da palavra, procuro inutilmente um equivalente em outras línguas, embora eu tenha dificuldade de imaginar que se possa compreender a alma humana sem ela”, escreveu Kundera. Pois é, o escritor checo escreveu, escreveu, mas ainda não deixou claro o que vem a sem esse raio de “litost”.
Deixemos que ele discorra um pouco mais a respeito: “Vou dar um exemplo: o estudante tomava banho com sua amiga, também estudante, no rio. A moça era esportiva, mas ele nadava muito mal. Não sabia respirar embaixo d’água, nadava devagar, a cabeça nervosamente levantada acima da superfície. A estudante estava tão irracionalmente apaixonada por ele e era tão delicada que nadava quase tão devagar quanto ele. Mas como o horário de banho estava quase na hora de acabar, ela quis dar por um instante livre curso a seu instinto esportivo e dirigiu-se à margem oposta num crawl rápido. O estudante fez um esforço para nadar mais depressa, mas engoliu água. Sentiu-se diminuído, desmascarado na sua inferioridade física, e sentiu a litost”.
Perdoe-me, senhor Kundera, mas ainda não entendi do que se trata. Deve ser, mesmo, um sentimento muito complexo. Mas, continue sua explicação. “Lembrou-se (o estudante) da sua infância doentia, sem exercícios físicos e sem amigos, sob o olhar excessivamente afetuoso da mãe e ficou desesperado consigo mesmo e com sua vida. Ao voltarem para casa por um caminho campestre, os dois se conservaram calados. Ferido e humilhado, ele sentia um irresistível desejo de bater nela. ‘O que está acontecendo com você?’, perguntou ela e ele a censurou: ela sabia muito bem que havia correntes perto da outra margem, ele a tinha proibido de nadar daquele lado, porque ela corria o risco de se afogar – e deu-lhe um tapa no rosto. A moça começou a chorar e, diante das lágrimas em seu rosto, ele sentiu pena dela, tomou-a nos braços e sua litost se dissipou”.
Ah, agora começo a entender o significado desse sentimento, mas ainda tenho dúvidas. E você, caro leitor, continua perdido ou começou a se fazer luz no seu cérebro? Se seu estado de compreensão enquadra-se no primeiro caso, deixemos que Milan Kundera esclareça de uma vez por todas essa questão. “Então o que é a litost? A litost é um estado atormentador nascido do espetáculo de nossa própria miséria repentinamente descoberta”.
Então é isso?! Xiiiii, então já tive a litost um montão de vezes. Hoje mesmo já me senti assim, impotente e (levemente) humilhado face às minhas fraquezas, ora físicas, ora afetivas, ora intelectuais. Você nunca teve sensação parecida ou, mais especificamente, esta descrita por Milan Kundera? Ora, pois pois.
Faltou dizer-lhes, somente, à guisa de informação, que o idioma chinês, ou o mandarim, mais especificamente, não tem propriamente um alfabeto, mas um conjunto variável de ideogramas. Seus signos (equivalentes às nossas letras) não expressam sons, mas idéias. Essa forma peculiar de escrita surgiu há mais de 4.500 anos. Originalmente, contava com cerca de 50 mil caracteres. Hoje reduziu-se a pouco mais de 10% disso e tem por volta de 6.500 caracteres na China e 13 mil em Taiwan. Como se vê, é meio difícil não ser analfabeto nesse milenar e populosíssimo país. Ali, para uma pessoa ser considerada alfabetizada, tem que conhecer, pelo menos, 2.000 caracteres específicos. Diante dessa informação, peço licença ao leitor para encerrar estas reflexões, pois estou tendo um surto de “litost”, já que não conheço um único ideograma de mandarim. Socorro, sou analfabeto (mesmo se tratando da língua chinesa)!!!
*Pedro J. Bondaczuk é jornalista e escritor, autor dos livros “Por uma nova utopia”, “Cronos e Narciso” e “O país da luz”.
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