“Senhora presidenta, ouça as mulheres”
As cegonhas vão parir… tudo está resolvido!!
Clair Castilhos [1]
Quando a presidenta Dilma Rousseff lançou o programa da Rede Cegonha inicialmente fiquei muito preocupada. Isto porque o Programa parece substituir a Política Nacional de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PNAISM, 2004), que por sua vez é a continuidade do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM, 1984) datado de quando o movimento de mulheres e feminista “adentrou” no Ministério da Saúde. Após muito esforço e paciência, conseguimos superar a velha e carcomida concepção de Saúde Materno-Infantil, pelos novos conceitos de Saúde da Mulher, formulados pelo movimento feminista e pelos (as) técnicos (as) da área.
Fiquei numa dúvida “hamletiana”, afinal como as cegonhas iriam nos substituir no ato de parir? Ou será que algum “marqueteiro” da campanha presidencial, apostando na infantilização das mulheres e do povo brasileiro resolveu buscar inspiração em uma das tantas lendas que envolvem tão nobre ave pernalta? Pensei que poderia ser um programa associado às gravidezes das “top models” devido à semelhança com o porte elegante e altivo da ave, depois imaginei que sendo um governo popular, de recorte e tendência para os (as) trabalhadores (as) poderia estar se referindo aos caminhões cegonheiros que transportam carros (também devido ao grande incremento desta indústria de ponta, em nosso país). Afinal, resolvi me instruir no Dicionário do Aurélio e o verbete, referente “cegonha” me deixou mais tranqüila. Vejamos:
Cegonha [Do lat. ciconia.]
Substantivo feminino. 1.Zool. Ave da ordem dos ciconiiformes, ciconiídea, gênero Ciconia, da Europa. A espécie mais comum é C. ciconia, ave migradora, que nidifica na primavera no N. da África e C. da Europa, e passa o inverno no S. da África e na Índia. Constrói ninhos nas chaminés e habitações humanas, e a eles retorna anos a fio. [Há muitas lendas populares em torno da cegonha, segundo uma das quais os recém-nascidos são trazidos por elas.] Existem 16 espécies conhecidas, no gênero. (…)
3. Bras. Caminhão especialmente projetado e construído para o transporte de carros das fábricas às revendedoras; cegonheiro.
A primeira constatação, à luz do Aurélio, é que a cegonha é uma ave européia, migradora e que não existe no Brasil. Sendo assim a tal Rede Cegonha terá que importar muitas aves desta espécie para que as mesmas sejam criadas e adestradas para exercer suas funções no solo pátrio/mátrio ou mudar as suas rotas de migração.
A segunda constatação é que “há muitas lendas populares em torno da cegonha, e segundo uma das quais os recém-nascidos são trazidos por elas” (sic).
Portanto devemos ficar tranquilas, esta rede tem poucas probabilidade de se consolidar, pois existem muitas dificuldades para a sua realização. Vejamos: a tal ave é européia (a dificuldade para o incremento da natalidade naquelas paragens é notória!); a volta ao passado é uma coisa que não combina com o antigo país do futuro, hoje potência emergente consolidada; a saúde da mulher, para valer, não pode ser pensada em torno de ações tão restritivas e reduzidas; e por último, a RELAÇÃO DAS CEGONHAS COM OS RECÉM-NASCIDOS NÃO PASSA DE LENDA!!!
Será que estão nos envolvendo em mais uma ilusão?
Será que ainda precisamos avisar que a nossa proposta – Assistência Integral à Saúde da Mulher – inclui pré-natal, parto e puerpério, tratamento da infertilidade e tantas outras ações indispensáveis ao longo de todo o ciclo vital da mulher? Será que ainda cabe na imaginação de alguém que possamos ser contra as ações materno-infantis? Será que é necessário ficar a todo o momento dando satisfação às forças conservadoras e fundamentalistas que o governo aparentemente não é partidário do conceito de Direitos Reprodutivos?
É importante raciocinar que a trajetória de redução das ações integrais da saúde da mulher nunca foi abandonada pelos que a ela se opõem. Revolvendo a história do programa vemos que o PAISM nunca chegou a ser implantado na sua totalidade, nem operacional e nem geográfica, depois, tentamos o PNAISM que foi esvaziado com manobras diversionistas tipo Pacto pela Vida, 2006 e que por sua vez foi reduzido aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e, agora, para coroar o retrocesso a tal Cegonha.
Finalmente, recomendo que para as demais políticas também procuremos no imaginário popular nomes capazes de abranger a profundidade das ações.
Proponho alguns exemplos para títulos de políticas públicas, bem ao gosto dos “marqueteiros” palacianos e dentro de um certo espírito internacionalista. Vejamos: sugiro trocar “Direitos Reprodutivos” por “Controle de Natalidade” e o programa seja “Coelhinho da Páscoa nunca mais” (trata-se de um animal muito prolífico, que merece nominar ações de natureza reprodutiva); “Violência contra a mulher” poderia ser “Chapeuzinho Vermelho, forever…”; pela Igualdade de Gênero “Viva o lobisomem e a lobismulher”; contra a lesbofobia, “Sapatinhos de cristal empowerment”; para desigualdade no trabalho a “Estratégia Branca de Neve” (aquela que trabalhava de graça para os sete anões); para Direitos Sexuais, “João e Maria e a inversão de prioridades – como comer a bruxa” e assim por diante.
Do ponto de vista conceitual seriam contempladas várias lendas, crendices e ditados populares e envolveriam, me parece, o sentido que está sendo dado ao SUS – o de realidade indigesta para o complexo médico-hospitalar-industrial. E, se continuar o desmonte do SUS e as operações para privatizá-lo mediante uma busca incessante de artifícios próprios do estado-mínimo não teremos mais lugar nenhum para implementar nossas políticas. Teremos uma grande Rede Tucana, se o tema continuar sendo a ornitologia.
Finalmente, deixando o “delirium tremens” de lado, é profundamente doloroso que tenhamos que criticar a formulação e implantação de um programa do Ministério da Saúde voltado para nós mulheres. E o mais irônico e melancólico é que isto aconteça precisamente no momento em que temos um governo presidido por uma mulher com valorosa e digna trajetória política.
Nós, mulheres, apenas demandamos o seguinte: – Senhora presidenta, ouça as mulheres!
[1] Professora Adjunta IV do Departamento de Saúde Pública da UFSC
Conselheira do Conselho Nacional de Saúde – 1997 a 2003 e de 2007 a 2009.
Membro do Conselho Diretor da Rede Nacional feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
Casa da Mulher Catarina – Florianópolis – SC
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