17 de abr. de 2011

Duas tradições: a libertária, que é a nossa, e a autoritária, que é a deles

Um ex-presidente da República, presidente de honra de um partido político, escreve um artigo em que afirma, entre muitas outras coisas, que é inútil o PSDB disputar o “povão” com o PT porque essa legenda aparelhou os sindicatos e os movimentos sociais. E se arma um grande carnaval. A marcha da estupidez se encarregou de deturpar o texto, de atribuir-lhe características demofóbicas, ignorando a crítica essencial. Um ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, sugere que a casa de cada brasileiro seja revistada pelo Estado em busca de armas, e é como se não tivesse dito nada. Escrevi ontem a respeito. Certas questões deste artigo requerem a leitura daquele. Por que as coisas são assim? Há uma explicação? Há, sim. E falarei a respeito, não sem antes apontar a mais recente tolice de Elio Gaspari, que, definitivamente, segue trajetória qualitativa oposta à dos vinhos.
Em sua coluna de hoje, escreve a seguinte nota:
FHC E O POVÃO
Nunca foi tão sábia a frase de FHC: “Esqueçam o que eu escrevi”.
Também ele investe no obscurantismo, na mentira e na pilantragem intelectual. Na repórter Daniela Lima se perdoa, ao menos, ao que parece (não sei quem é), a juventude. Ignoro que idade tem, mas a forma como junta palavras sugere uma trajetória ainda curta. Juventude e ignorância têm cura. Gaspari não tem. A propósito: FHC nunca disse aquela besteira, até porque não precisaria. Quem leu seus livros, não é o caso de Eremildo, sabe que não haveria razão para esquecê-los porque sua trajetória pública é compatível com eles. Agora volto lá ao primeiro parágrafo. Se Gaspari topar, a gente faz o seguinte: ele escreve um artigo provando que o ex-presidente teria de esquecer o que escreveu, e eu escrevo outro provando que não. Mas os dois têm uma obrigação: justificar a tese com trechos da obra. Só na base do achismo picareta, não vale. Porque aí eu perco.
Por que um texto que trata de uma questão política, histórica, sociológica vira um escândalo, e o que é, em si, um escândalo, é ignorado? Porque, meus caros, trata-se do choque de duas concepções de mundo, de dois eixos em torno dos quais se agregam valores, de duas escolhas. FHC cometeu a “imprudência” de escrever a palavra “povão”, um fetiche para esses esquerdistas endinheirados das redações, que foram treinados por petistas nas escolas - também eles, já escrevi aqui, de uma ignorância estupenda. O “povão” se torna uma instância sagrada - menos quando faz alguma coisa de que eles não gostam… -, fonte de saber natural. Confunde-se a força legitimadora da democracia com a verdade absoluta. Assim, aqueles que dizem representar esse “povão” são, por conseqüência, portadores dessa verdade.
Vocês são leitores de vários veículos de comunicação e acompanham o noticiário de TV e rádio. Já leram, viram ou ouviram alguma ponta de isenção ao menos na cobertura de manifestações dos chamados “movimentos sociais”? Não há! Estão todos dispostos a fazer justiça com o próprio teclado ou o próprio microfone. O “povão” a que FHC se refere, ESTÁ ESCRITO LÁ, são os movimentos aparelhados pelo PT - que, de resto, não representam o povo de jeito nenhum! Representam as próprias causas, nada mais!
A gritaria provocada pelo texto de FHC é compatível com o silêncio sobre a entrevista de Luiz Fux. Para quem não sabe, o ministro defende uma ação forte do estado para recolher armas. Ao pensar num modo de pôr em prática tal operação, não teve dúvida:
“Não [se] entra na casa das pessoas para ver se tem dengue? Tem que ter uma maneira de entrar na casa das pessoas para desarmar a população”.
Já chego às violações constitucionais contidas na sugestão. Quero continuar na minha questão central: por que o silêncio? PORQUE, INFELIZMENTE, ESTE PAÍS NÃO DÁ A MENOR BOLA PARA OS INDIVÍDUOS. Um dia depois da tragédia do Rio, quando começou essa besteira do desarmamento, afirmei que, por aqui, não se acredita no indivíduo nem para o bem nem para o mal. A tentativa de buscar uma razão coletiva, social, para justificar o ato tresloucado sugere que se considera inconcebível que alguém possa fazer aquilo. E, como vimos, pode. Ponto final.
Um membro da Suprema Corte Americana que dissesse algo parecido com o que disse Fux seria alvo de um processo de impeachment. Mas não haveria a chance de isso acontecer porque eles fazem por lá uma escolha correta: procuram não atuar nem como legisladores nem como “lobistas do bem” - é isto o que está fazendo Fux: um lobby daquilo que ele considera ser o “bem”. Será tão difícil assim convencer alguns dos nossos magistrados que a eles não cabe nem fazer o “bem” nem o “mal”? Não sendo bandidos, não são também justiceiros. A eles cabe fazer justiça decidindo segundo a lei. Ponto. Nota à margem: Fux defendeu com tintas literárias e dramáticas o aborto de fetos anencéfalos. É a opinião dele. Como o caso está em julgamento no Supremo, entendo que ele deveria ter-se calado a respeito. Ou então se declare impedido. É uma questão de decoro. Sobre qual outra questão ele pretende se posicionar antes do julgamento propriamente? Se pode especular sobre essa, por que não sobre outras?
A crítica que fez FHC à oposição é orientada por uma concepção de estado fundado no respeito à democracia, às liberdades individuais, às instituições. A reação bucéfala àquilo que escreveu e o silêncio absurdo que se segue à entrevista de Fux também têm história: é o sonho de um estado forte o bastante para ordenar também a vontade das criaturas, que possa processar uma reengenharia do homem, de sorte que ele se torne imune, preventivamente, a todos os desvios. No primeiro caso, acredita-se que a liberdade é um bem e que se chega a uma sociedade melhor por meio do esclarecimento. No segundo, entende-se que a liberdade é um risco.  FHC pode não ser um liberal, mas está falando de uma sociedade que é filha do liberalismo, que saiu daquela matriz. A sociedade que fizesse o que Fux sugere - e talvez derive daí o silêncio na tal “mídia” - seria filha, necessariamente, do fascismo ou do comunismo, que são menos distintos do que supõem alguns tontos: o primeiro queria para o estado o que o segundo pretendia que fosse executado pelo partido.
Liberalismo, fascismo e comunismo não existem mais hoje em dia em suas expressões puras, mas o código das idéias originais está presente nas várias correntes de pensamento que  andam por aí. Na imprensa brasileira - sim, há exceções -, temos uma esmagadora maioria de subprodutos intelectuais do fascismo e do comunismo.
Para encerrar
Quanto às teses do ministro Fux  sobre armas, Internet e plebiscito só para mulheres (ver texto de ontem), eu queria lembrar alguns incisos do Artigo 5º da Constituição, cláusulas pétreas. Eu sei que ele os conhece. Só estou deixando claro que nós também conhecemos.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial:
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Talvez Fux tenha imaginado uma fórmula originalíssima de pôr em prática as suas propostas sem violar o que vai acima. Ou, então, estará pedindo licença para violar a Constituição, mas só um pouquinho, só três incisinhos, pô!!! Pensem bem: se nem um ministro do Supremo pode mais violar a Constituição, gente!, aonde é que vamos parar??? Daqui a pouco, todos ainda acabam iguais perante a lei…



Por Reinaldo Azevedo

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