17 de abr. de 2011

DENÚNCIA


“Crime organizado é onde tem poder, onde tem dinheiro e isso está dentro do Estado, dentro das elites econômicas”.




A descoberta de que um grupo miliciano, supostamente comandado pelo vereador André Ferreira da Silva (PR), o Deco, pretendia assassinar o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ) não surpreendeu o parlamentar. A informação sobre o plano foi ventilada nesta quarta-feira, após operação de policiais da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado contra a milícia que atua na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Na ação, Deco acabou preso. A chefe de Polícia Civil, Martha Rocha, também foi apontada como alvo.
Freixo, que presidiu a CPI das milícias em 2008, em entrevista ao Terra Magazine, 13-04-2011, revela já ter recebido outras ameaças, o que o fez andar com proteção 24 horas. Na avaliação de Freixo, as milícias são o "verdadeiro crime organizado do Rio de Janeiro" e têm claro projeto de poder.
Em sua opinião, “crime organizado só existe dentro do Estado, em qualquer lugar do mundo. O crime não se organiza nas áreas pobres. Na pobreza, tem muita arma, muita droga e muita miséria. Isso não combina com o crime organizado. Crime organizado é onde tem poder, onde tem dinheiro e isso está dentro do Estado, dentro das elites econômicas. O dinheiro do crime organizado não está nas áreas pobres. Está nas bolsas de valores, na especulação imobiliária” - afirma, criticando o que considera conivência estratégica do poder público.
Eis a entrevista.
O senhor já tinha a informação de que o grupo comandado pelo vereador André Ferreira da Silva (PR), o Deco, planejava assassiná-lo? O vereador estava entre os indiciados na CPI das Milícias, em 2008?
Em 2008, fui presidente da CPI das milícias. A CPI indiciou mais de 200 pessoas, vários deles vereadores, deputados. A milícia, aqui no Rio, é um crime organizado que não só domina território e é fortemente armado, mas tem projeto de poder, tem braço político. Deco era um desses braços políticos. Em 2008, ele era vereador e candidato à reeleição. Ele perde a eleição e diz que perdeu por causa da CPI. Ele chegou a me fazer uma ameaça direta. Teve um momento em que fui apresentar o relatório da CPI na Câmara de vereadores, ele estava na sala e fez ameaças. Ele foi indiciado. É miliciano e um dos criminosos mais perigosos do Rio de Janeiro. Responde por homicídio, formação de quadrilha, extorsão. É a mais clássica milícia. É lamentável que uma cidade como o Rio, às vésperas de grandes eventos, ainda tenha no seu poder público, pessoas que representam o crime e não, a República.
O senhor ressaltou uma particularidade das milícias: elas têm "projeto de poder", "braço político". Sei que são problemas distintos, mas se pudesse ser feita uma comparação com o tráfico de drogas, pode-se dizer que as milícias são hoje, no Rio de Janeiro, mais difíceis de combater?
São grupos que agem de forma completamente diferente. O tráfico internacional de drogas, claro, é muito organizado, é associado ao tráfico de armas, mas o tráfico feito nas favelas do Rio, o tráfico que é efetivamente enfrentado pela polícia de forma bélica, este tráfico é o crime desorganizado. São pessoas com baixíssimo nível de escolaridade, que não se organizam e cada vez mais jovens. Não quem vende armas, não quem fornece a droga para eles. É muito violento, tem que ser enfrentado, mas é muito desorganizado.
Sob este ponto de vista, o senhor diria que as milícias são mais problemáticas do que o tráfico?
Muito, mas muito mais. A milícia é o verdadeiro crime organizado do Rio. Não tem comparação. Ela é feita por agentes públicos, está dentro do Estado. Chegou a controlar territórios, delegacias, merenda escolar, controlar nomeações de diretores de escolas e de hospitais. A milícia frequenta o Palácio, tem projeto de poder. Elegeu vereadores, deputados. Influenciou na eleição de deputados federais. A milícia é crime, polícia e política misturadas de uma maneira que você não separa mais. E é a que mais cresce no Rio de Janeiro. O número de áreas dominadas pela milícia hoje é igual ao número de áreas dominadas pelo tráfico, num tempo muito curto. Mesmo depois da CPI das milícias...
A CPI ajudou a descortinar o problema das milícias no Rio. O que mudou após os trabalhos da comissão e como o senhor avalia a atuação da polícia e do Ministério Público no enfrentamento a esses grupos?
A CPI teve uma importância muito grande. Não só porque indiciamos 225 pessoas e quase todas foram presas. Tivemos um resultado muito concreto. Mudamos a opinião pública sobre as milícias, que eram, até a CPI, consideradas um mal menor. Um ex-prefeito do Rio chamava a milícia de "autodefesa comunitária". Só para se ter uma ideia de como o poder público foi conivente e irresponsável em relação ao enfrentamento a esse grupo organizado. Na verdade, o que temos, aqui, no Rio, foi uma tolerância muito cômoda. As milícias conseguiram voto, ajudaram a eleger muita gente. A diferença é que, de 2004 em diante, resolveram eles mesmos serem candidatos, resolveram participar do banquete e não só oferecer o banquete.
Quantos parlamentares foram identificados como tendo envolvimento com as milícias?
Tivemos um deputado estadual, que está preso. Tivemos três vereadores da cidade do Rio, três vereadores de (Duque de) Caxias, um de Nova Iguaçu, um de Araruama. Isso vai se espalhando. Não sei de cabeça quantos, mas são muitos parlamentares.
Uma infiltração clara no poder público...
É claramente o crime como um projeto de poder. Isso só pode ser feito quando se está dentro do Estado e não, fora. Crime organizado só existe dentro do Estado, em qualquer lugar do mundo. O crime não se organiza nas áreas pobres. Na pobreza, tem muita arma, muita droga e muita miséria. Isso não combina com o crime organizado. Crime organizado é onde tem poder, onde tem dinheiro e isso está dentro do Estado, dentro das elites econômicas. O dinheiro do crime organizado não está nas áreas pobres. Está nas bolsas de valores, na especulação imobiliária. Então, tem que ter vontade política para enfrentá-los. Nisso, a CPI foi vitoriosa. Ela conseguiu descortinar, mostrar o que é a milícia. Agora, para acabar com a CPI, o próprio relatório da CPI apresenta 58 propostas concretas para enfrentar as milícias.
Destas 58 propostas, quantas foram aplicadas efetivamente?
Pouquíssimas.
A que o senhor atribui isso?
À falta de coragem política. Há uma tolerância, ainda hoje, muito maior por parte do poder público com as milícias do que com outros grupos criminosos. Deveria ser igual. Vou te dar um exemplo: As UPPS (Unidades de Polícia Pacificadora), que representam um projeto interessante, não atingem as milícias. Elas são todas em área de tráfico de drogas. A não ser no Batan. Se você questionar alguém do governo, vai falar isso. Mas o Batan era uma área de milícia, mas tem um efeito simbólico. Foi lá que repórteres do Jornal O Dia foram barbaramente torturados. Então, o Batan é uma resposta simbólica.
Esse episódio pode ser considerado um divisor de águas?
Sim. Só aprovei a CPI por causa disso. A CPI esperou um ano e meio para ser aprovada. Para você ver como a milícia tem força no Parlamento.  Então, são 58 propostas concretas que não envolvem só ação policial. Por exemplo: transporte alternativo. O Deco está preso, inclusive, porque controlava o transporte alternativo. Onde a milícia se estabelece, controla o transporte alternativo. É um lucro absurdo. Só para se ter uma ideia, uma das milícias em que conseguimos a quebra de sigilo, tivemos acesso às contas da cooperativa de vans. O faturamento era de R$ 170 mil por dia. Só com o transporte alternativo. Então, se a prefeitura do Rio de Janeiro não fizer alguma coisa, as milícias continuam agindo. Entreguei um relatório nas mãos do prefeito (Eduardo Paes/PMDB) e, até hoje, a prefeitura continua não regulamentando o transporte alternativo, fazendo a licitação por cooperativa, e não uma licitação individual, como a gente propôs.
O senhor está dizendo que há uma omissão do poder público?
É mais do que omissão. É conivência, porque a milícia acaba sendo interessante para alguns projetos políticos. Todo miliciano é base do governo. O Deco era base do Eduardo Paes. O Deco era do PR, mas votava tudo com o prefeito, porque tem favores da prefeitura no seu domínio e retribui à prefeitura com votos.  Esse escândalo que envolve crime, polícia e eleição é o que mais alimenta a milícia. Precisa ser debatido largamente. Não é um problema policial. É um problema político.
O senhor destacou a infiltração de milicianos na política. Há, em sua opinião, partidos que favorecem esse processo?
Claro. Essa é uma radiografia muito interessante. Nenhum deles é eleito pelo partido da milícia. Na época do (ex-prefeito) César Maia (DEM), quase todos eram candidatos pelo Democratas ou pelo PMDB, que era o partido do governador.
Para o senhor, o que está na entrelinha?
Os partidos têm uma responsabilidade gigantesca porque dão legenda para esses caras, sabendo quem eles são. O Deco foi eleito pelo PR. Ninguém do PR sabia que ele era miliciano? Ele indiciado desde 2008 na CPI. Os partidos são irresponsáveis. Pensam no resultado eleitoral, mas não pensam na consequência que se tem para o Rio de Janeiro e para a população. Então, não só a polícia, mas a prefeitura, o governo estadual, os partidos políticos... Todos têm que ser chamados na sua responsabilidade. A prisão do Deco tem que, mais uma vez, levantar esse debate, que está apagado, como se as UPPs tivessem resolvido todos os problemas de segurança pública no Rio de Janeiro. Isso é uma farsa. São 16 UPPs e mais de mil favelas.
Atualmente, quantas áreas no Rio são dominadas pelas milícias?
Na época da CPI, eram aproximadamente 171 regiões dominadas pelas milícias. Isso cresceu muito de 2008 pra cá. Mesmo com a prisão de vários líderes, a milícia continua a crescer. Exatamente porque não cortamos os braços econômicos. Se o poder público não cortar deles, o domínio do gás, da van, do "gatonet", eles vão continuar crescendo, mesmo com seus líderes presos.
Quantas ameaças o senhor já recebeu desde que ficou à frente da CPI das milícias?
Nunca recebi ameaças do tipo ligar, mandar alguma coisa, mas a polícia já descobriu alguns planos deles para me matar. Honestamente, conversei com minha família hoje, o que estou fazendo não é inconsequente. Estou fazendo o que me cabe, o que é papel do poder público. O problema é que outros não fazem. A câmara dos vereadores não cassa. Quero ver se vai cassar o Deco. Quero ver esses vereadores, que se dizem diferentes dos milicianos, vão cassá-lo. Vou cobrar. A covardia é muito grande. Se não fosse assim, os milicianos não teriam a quem ameaçar, porque a força seria muito grande.

José Luiz Barbosa


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