10 de abr. de 2011

Sob o signo da estupidez. Ou: Abaixo os “Salvadores de Homens”

 

 

Participei outro dia de um seminário promovido pelo Instituto Millenium e afirmei algo mais ou menos assim: “Tenho muito medo das pessoas que querem nos salvar”. Ao fim do evento, fui abordado por um senhor muito simpático que me pediu algumas explicações. Então eu, católico que sou, condenaria, por princípio, os discursos religiosos, em especial a mensagem cristã, que acena com a salvação? No contexto em que falava, referia-me não aos salvadores de almas, mas aos “salvadores de homens”, essa gente que tem na cabeça uma civilização de sonhos, fundada no que entendem por “igualdade” e na garantia dos direitos coletivos, que deveriam ter primazia sobre os direitos individuais. Tenho medo porque o que eles chamam “democracia” é tirania. Lembro de novo o “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”, de Rousseau. O “castelão e vagabundo”, como o definiu Fernando Pessoa, redigiu o texto e enviou para Voltaire, que ficou mudo. Rousseau se incomodou com o silêncio do outro e resolveu exigir uma apreciação crítica. Recebeu-a: “Quando se lê o seu trabalho, dá vontade de andar sobre quatro patas”.
É isto: nestas duas semanas, o debate político, intelectual e ideológico regrediu, sei lá, uns 30 anos no tempo. O país se flagrou tentado a andar sobre quatro patas. Eu me vi, de novo!, combatendo a Lei da Censura e quase recitando palavras de ordem: “A liberdade é sobretudo a liberdade dos que discordam de nós”. Um dos eventos que marcaram a marcha para o século passado foram as declarações infelizes do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), que acordaram os censores do mundo dos mortos — e os fantasmas saíram do armário. A culminância foi o festival de besteiras que se seguiu à tragédia no Rio, que devastou a vida de muitas famílias. Temi um tantinho pelo nosso futuro como país. E olhem que sou, de natural, otimista. Já que falei de Voltaire, voilá: tenho o meu lado ingênuo, Pangloss; esforço-me para acreditar que tudo caminha para o melhor dos mundos — mas, é evidente, sem jamais deixar “de cultivar o nosso jardim”.
Será assim tão difícil distinguir as boçalidades que Bolsonaro diz — relevando que também diz coisas sensatas, embora ele seja bem pouco generoso com os próprios acertos — do seu direito constitucional de dizê-las? Será assim tão difícil aceitar o fundamento de que o direito à livre expressão não regula o conteúdo do que é dito, ou, então, livre ela não seria? Será assim tão difícil acatar a evidência de que, numa sociedade democrática, crime não é o que cada um de nós, um grupo ou um tirano considera crime, mas aquilo que a lei define como tal, ou, de outro modo, estaremos não no melhor, mas no pior dos mundos?
Não! Não me espantaram as manifestações dos grupos organizados. Esses cumprem o seu papel e o seu propósito. Toda militância particularista é mesmo um pouco estúpida. Aliás, a sua razão de ser, em certo sentido, repousa na incapacidade de ver o conjunto. São, escrevi aqui esses dias, fragmentos da grande desilusão marxista que assegurava que a história tinha um eixo — a luta de classes — e um protagonista: a classe operária, grávida de todos os futuros. Acabou! O reino da justiça se faria agora no abandono das pretensões universalizantes, as burguesas e as proletárias, em favor dos parcialismos. Assegurados seus direitos especiais — que, curiosamente, são chamados de “coletivos” —, teríamos, então, um mundo mais igualitário e mais justo.
Espantosas, aí sim!, são as manifestações de entes do que antigamente se chamava “sociedade civil” contra as garantias que constituem pilares da sociedade democrática e do estado de direito.  Esses entes tornaram-se agentes da promoção dos parcialismos. Se, antes, exerciam o saudável papel de árbitros dos conflitos, reconhecendo como legítimos os anseios reformistas da militância, mas apontando seus limites, mostram-se hoje panfletários buliçosos de minorias influentes. Figuras ilustres da OAB — de tão relevantes serviços prestados à redemocratização do país e à luta contra a censura — saíram atacando de forma vergonhosa a liberdade de expressão porque, afinal, não podiam concordar com as barbaridades ditas por um deputado!!! Praticamente pediram a sua cassação, comportando-se já como juízes.
Se alguém indagar a esses valentes se acreditam que o pior assassino tem direito a um advogado, eles dirão que sim, é evidente! Boa parte da imprensa não se comportou melhor do que a OAB na primeira semana ao menos; depois, foi ajustando o seu registro, mas os “indignados do bem” ainda protestam, afirmando, de modo muito pudoroso, que é bom, sim, termos um regime de liberdades no Brasil, mas sem exageros. O “exagero” costuma ser cometido por aqueles que discordam de nós. E Bolsonaro? Bem, este só tem motivos para ser grato aos militantes, à imprensa e à OAB. Aposto que, em 2014, ele terá ainda mais votos do que em 2010. Ao ser enviado para o paredão, não ganhou um só adversário novo, mas ampliou a grei de admiradores; ficou parecendo a luta de um contra um bando.
Imprensa e OAB já haviam, na semana anterior, escrito e dito barbaridades sobre o Projeto Ficha Limpa — e não se procedeu de forma muito diferente com a Operação Castelo de Areia. Há um ímpeto de moralização da vida pública — e isso é saudável! — que deu para chamar de “impunidade” garantias constitucionais e processuais QUE PROTEGEM A DEMOCRACIA PORQUE PROTEGEM O INDIVÍDUO. Protegem conta quem? Atenção, queridos! Protegem-no (e protegem-nos!) contra o Estado e seus comandantes de turno. A origem do direito, conforme o conhecemos, não está numa briga de vizinhos nas cavernas, coisas que poderia lá ser resolvida entre eles, caçando seus mamutes (caverna e mamutes são contemporâneos? Sei lá eu!). A origem do direito está na necessidade de assegurar que UM INDIVÍDUO não seja molestado pela vontade arbitrária do soberano. “Mas e se o bandido se aproveita disso?” Certamente não resolveremos o problema cassando prerrogativas dos não-bandidos! E isso nos remete a esta triste semana que termina.
Delírios
Vimos o acontecimento brutal numa escola do Rio, com a morte de 12 crianças. Não faz tempo, centenas delas foram soterradas em Petrópolis, no que foi chamado o “maior desastre natural do país”. Natural??? Algumas ficarão sepultadas para sempre no ambiente daquela tragédia. Sobre seus corpos, vão se erguer edificações. Não terão direito nem mesmo à “Santa Cruz”,  pequeninas capelas que ainda hoje se erguem nas áreas rurais do Brasil em que pessoas tombam mortas, pouco importa o motivo. Na fazenda em que passei parte considerável da infância, há uma. Ali foi assassinado Vitorino, que humilhara um camarada mais fraco do que ele num jogo de futebol. Crime de faca. Era um domingo. O campo, que não existe mais, ficava nas terras de um tio meu. Tínhamos com ela, eu menino,  um misto de reverência e terror. Íamos rezar na Santa Cruz e a mantínhamos limpa, com toalha de crochê e imagens de santos. No lusco-fusco, enxergavam o vulto de Vitorino nos assombrando — eu nunca; no breu da noite, muitos viam a luz de uma vela iluminando a capelinha. É um jeito de não morrer. Como se nota, Vitorino vive de algum modo. Em Petrópolis, muitos simplesmente desapareceram. Morte absoluta.
Mesmo assim, a tragédia da cidade está entre os eventos que podemos compreender. O misto de moradias em áreas irregulares, de incúria do poder público e de uma chuva realmente devastadora produziu aquelas mortes. Há uma espécie de resignação. Já o assassinato das crianças deixa-nos perplexos. O que fazer? Não há o que fazer. As razões que habitavam a terrível solidão daquele rapaz se foram com ele. Cria-se uma espécie de frenesi em busca de uma resposta, e os políticos, obviamente, não resistem à tentação de apontar uma “saída”. E se tirou do baú, então, a velha e estúpida idéia de “desarmar a sociedade”. Como? Proibindo a venda legal de armas!
Borda-se, assim, o evento trágico com uma estupenda bobagem. No Japão, um assassino precisou de uma faca para matar oito crianças. Dilma Rousseff afirmou que o crime foge às “nossas características”, numa declaração infeliz. De fato: as “nossas características” compreendem mais de 50 mil assassinatos por ano — 26 homicídios por 100 mil habitantes, contra apenas 6 nos EUA. A maior parte é vitimada por armas de fogo ilegais, como eram, diga-se, as do rapaz da escola. Nesse caso, no entanto, ainda que se abolissem todas as armas desse gênero, ele encontraria uma maneira.
Em seu nono ano de governo, o PT pouco fez — na verdade, nada fez —  contra o espantoso número de assassinatos no Brasil. Boa parte do tempo, o Ministério da Justiça ficou sob o comando de Tarso Genro, aquele que ouviu dizer que “maconha é muito saborosa”. O índice nacional só não explodiu porque São Paulo segue sendo um exemplo de combate aos homicídios: queda de 62,4% entre 1998 e 2008 (10,4 mortos por 100 mil habitantes em 2010). No período, no Norte e no Nordeste, os dados são alarmantes: crescimento de 297% no Maranhão, de 237,6% na Bahia, de 177,2% em Alagoas, de 174,8% em Sergipe, de 193,8% no Pará… Assistimos, isto sim, ao contingenciamento da verba destinada à Segurança Pública. Pois bem, dada essa realidade, o governo federal houve por bem, à esteira da tragédia no Rio, lançar uma campanha em favor do… desarmamento. Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo e José Sarney acreditam que, tirando as armas legais das mãos das pessoas decentes, vão coibir o crime dos bandidos e dos malucos.
E, mais uma vez, os militantes, os particularistas, os “salvadores de homens” estão presentes para advogar que os “direitos coletivos” devem se sobrepor aos individuais. Mandam-me aqui um troço de uma jornalista — sim, jornalista! — que defendeu na TV que o governo monitore com mais severidade a Internet para impedir que um assassino como esse tenha acesso a mensagens perigosas! O que ela quer?
Encerrando
Estamos passando por um acelerado processo de emburrecimento do debate público. Nunca tantos falaram tanta bobagem e com tanta convicção contra os fundamentos que regem a democracia e o estado de direito. Mas por que chegamos a isso? Esse é outro texto, que publicarei neste domingo.
Por Reinaldo Azevedo

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