"Mudar Estatuto do Desarmamento por massacre em Realengo é oportunismo"
Para sociólogo, reação dos políticos, na linha da supressão dos direitos individuais, é típica das democracias de massas em momentos de comoção
André Vargas
O massacre em Realengo foi perpetrado com duas armas adquiridas ilegalmente. Mesmo assim, o clima de consternação nacional deu brecha para a tentativa de reabertura da discussão sobre o direito ou não do cidadão comum possuir armas legalizadas. Na opinião do cientista político Demétrio Magnoli, trata-se do mais puro oportunismo político. De modo deliberado, o estado (ministros, senadores, deputados, secretários estaduais) tenta criar uma cortina de fumaça para desviar a atenção de suas responsabilidades, que é combater o crime organizado e a polícia corrupta, os verdadeiros matadores – incluindo aí políticos.
Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em geografia humana
Ele compara o número de homicídios no Brasil, 26 por 1.000 habitantes, contra as seis mortes por 1.000 nos EUA, onde a posse de armas faz parte da cultura. Também aponta as explicações para a redução dos homicídios na região Sudeste. Para Magnoli, mais do que suprimir um direito específico, um eventual banimento das armas de fogo pode abrir uma perigosa exceção contra as liberdades individuais. “O estado quer provar que a sociedade é formada por crianças irresponsáveis que precisam de tutela”, diz.
Faz sentido ressuscitar a discussão sobre o banimento das armas em função do massacre em Realengo? É uma proposta de um oportunismo quase inaudito. Mudar o Estatuto do Desarmamento, que foi referendado em 2005, não tem nenhum nexo lógico com a chacina em Realengo. As armas do assassino (Wellington Menezes de Oliveira) não foram compradas legalmente. A figura do assassino, porém, é muito oportuna para quem defende o discurso da confusão. Em vez disso, é preciso discutir as estratégias de combate ao contrabando de armas na fronteira e o seu comércio.
Então, políticos querem se aproveitar da tragédia? É apenas uma reação típica das democracias de massas em momentos de comoção popular. Mais grave ainda é o tipo de respostas fáceis e erradas que a classe política tenta dar, com o retorno de uma doutrina que defende que o estado deve tutelar a sociedade, subtraindo direitos dos cidadãos para protegê-los deles mesmos. É algo perigoso. O que me preocupa não são as armas. Mais adiante, em nome da segurança, pode-se abrir caminho para a supressão de outros direitos hoje garantidos.
Em 2005 foi mantido o direito do cidadão possuir armas. Foi uma surpresa? A campanha dos que eram contrários à proibição foi inteligente. O curioso é que todos os grandes partidos, importantes veículos de mídia e uma miríade de ONGs estavam unidas pela proibição total. Em tese, era uma posição amplamente majoritária. Entretanto, quem estava do outro lado mostrou para a população que não se trava de saber se as pessoas queriam ou não ter armas. Afinal, a posse de armas não seria suprimida dos bandidos. Foi uma bela lição para a elite política.
O recado foi entendido? Alguns políticos perceberam. Um deles é Romero Jucá (PMDB-RR). Há poucos dias ele alertou que não se pode simplesmente convocar um plebiscito ou referendo sem uma ampla discussão antes. Ele disse: “Senão, seremos derrotados de novo”. Entendo que o “nós” se referia a toda classe política. Jucá alertou José Sarney (PMDB-AP) sobre oportunismo em excesso virar contra o oportunista.
Qual o resultado, se o banimento vier a ser aprovado desta vez? Seria criada mais uma desigualdade. Desta vez, entre os que poderiam pagar por empresas armadas de segurança e os que nem poderiam ter armas em casa para se proteger. É preciso lembrar que ninguém votou contra o desarmamento.
Os defensores da abolição das armas não se baseiam nas legislações rígidas de países europeus? Até tentam, mas é um argumento fajuto. O objetivo não é o controle das armas de fogo, que já existe por meio do Estatuto do Desarmamento. Eles não querem restrição nem controle, o que, aliás, eu acho bom.
Quem e por qual razão? As tentativas partem, geralmente, de ONGs engajadas na proposta da proibição total. É só para enganar os incautos. É preciso lembrar que hoje, no Brasil, as ONGs, com raríssimas exceções, funcionam como entidades governamentais, prestando serviços para diferentes níveis de governos e vivendo de dinheiro público nacional e internacional. Acho normal que, em função desta inserção no mundo político e econômico, tenham desenvolvido este tipo de pensamento. Como se auto-intitulam representantes de setores, estas entidades e seus integrantes percebem a sociedade dividida em coleções de grupos. Não enxergam o indivíduo. Em função disso, os direitos individuais seriam uma ameaça a supostos direitos coletivos. Esse raciocínio faz parte do caldo de cultura ideológico deles.
O Estatuto do Desarmamento é eficiente? Para o sujeito comprar uma arma no Brasil é preciso atravessar um processo burocrático. Não é tão banal. É preciso apresentar provas de bons antecedentes, passar por exames psicológicos, comprovar habilidade.
Milhares de armas foram tiradas de circulação nos últimos seis anos. Algo melhorou? Acho que não. O problema não está em quanto, mas em quais. Todas as informações neste campo são suspeitas, pois são disseminadas por quem defende a abolição total. Sei, anedoticamente, que nas campanhas de desarmamento são entregues armas enferrujadas em troca de algum dinheirinho. Não poria minha mão no fogo por isso, mas observe as imagens. Falta uma estatística que aponte quanto daquelas armas eram ferro-velho e quantas tinham condições de uso. De 2005 para cá, umas 500 mil armas foram entregues. Existiriam também oito milhões de armas ilegais. Como assim? Como foi feita esta estatística? Detalhe: 500 mil sobre oito milhões não é uma proporção tão grande assim, se considerarmos que a campanha está aí há tanto tempo.
O número de vítimas por armas de fogo no Brasil é maior que nos Estados Unidos, onde o porte de armas é facilitado. Como isso é possível? Aqui, a média de homicídios é de 26 para cada grupo de 1.000 habitantes, enquanto nos Estados Unidos é de seis para 1.000. Esta desproporção não tem correlação com a população armada. Depende mais da característica de cada país. No caso do Brasil, são dois fenômenos. Primeiro, o crime organizado, ligado ao narcotráfico, que luta pelo controle de territórios e possui ramificações na pequena criminalidade. A seguir vem a violência policial descontrolada. A polícia aqui mata muito em relação às prisões que faz. Nada disso tem relação com as leis sobre porte ou posse de armas. Porém, as campanhas promovidas pelo governo federal reforçam a ideia de que as mortes são causadas por um impulso descontrolado em busca de armas, a fim de produzir violência. Seria como se a sociedade fosse constituída por crianças irresponsáveis.
Então o estado, propositalmente, se isenta da responsabilidade? Quando o ministro da Justiça (José Eduardo Cardozo) decide antecipar o início da próxima campanha de desarmamento para o dia da lembrança da chacina do Realengo, tenta perpetuar a noção de que a responsabilidade não é do estado, mas dos indivíduos. A narrativa implícita do governo sinaliza, claramente, que a culpa não é dele, que tenta civilizar os indivíduos com campanhas. Estes, por sua vez, resistem às iniciativas. É uma narrativa extremamente retrógrada.
O vereador Deco (PR), do Rio, foi preso, suspeito de ligações com uma milícia que matou trinta pessoas. Ninguém ligou o caso com o uso ilegal de armas. Por quê? Pois é. Este fato é que deveria ser correlacionado com a questão das armas. Mas estas correlações são ocultadas, impedindo que as causas da violência se tornem inteligíveis para todos.
Há também o fato do brasileiro comum não ter o costume de possuir revólveres em casa. Tanto que o número de armas legais é pequeno. Essa conversa que as fontes do arsenal dos bandidos são as armas roubadas das pessoas é coisa de louco. Como se todos tivessem automáticas em casa.
Mas nos grotões, onde o poder do estado é fraco, o pessoal anda armado. Em função de disputas de terra nas franjas da Amazônia e no Centro-Oeste. Isto já foi pior nos anos 70 e 80. Nestes lugares, o estado só existe episodicamente. Porém, não são em todos esses lugares que o índice de homicídios é elevado. Na região do Bico do Papagaio (norte Tocantins) houve uma elevação nos homicídios no começo dos anos 80. Atualmente, as disputas por terra regrediram por lá, assim como no norte do Mato Grosso e Rondônia.
Pesquisas indicam que número de homicídios no Sudeste caiu, enquanto que em outras regiões está em alta. O que ocorre? Há uma explicação estrutural, ligada à transição demográfica. Estamos deixando de ser um país jovem. A população na faixa etária entre 15 e 25 anos, mais propícia a praticar e ser vítima da violência, está em queda, principalmente nas grandes cidades. Este fator contribui para a redução. Antes ocorreu o mesmo fenômeno nos Estados Unidos. Além disso, existem políticas de segurança, que são mais eficazes em São Paulo que em Pernambuco, por exemplo. As grandes diferenças entre o número de mortes são resultado destas ações, já que o comportamento demográfico não varia tanto assim entre os estados. Sobre esta tendência benéfica, agem ou deixam de agir os governos.
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