“Que os estudiosos aprofundem o que este livro apenas sugere”
Perante uma assistência inédita em termos numéricos, foi lançado ao final da tarde de terça-feira, no anfiteatro da universidade ‘A Politécnica’, o primeiro volume da obra “Vidas, Lugares e Tempos”, uma autobiografia de Joaquim Chissano, o segundo Presidente do país. Neste primeiro volume, Chissano dá a conhecer o tempo em que não era ainda figura pública, ou seja, até ingressar no partido Frelimo. No prelo, estão prometidos mais dois volumes. “Mas ainda é necessário esperar algum tempo”, refere o autor.
“Olhem para estes papéis! Olhem para estes papéis! Olhem para estes papéis! Foi assim que eu escrevi o livro. Agora vou ver se me consigo reencontrar aqui. Escrevi isto pouco tempo antes de vir para aqui. Tenho setas para todo o lado. Já começo a perder-me e ainda não comecei.”
Foi assim, mostrando um conjunto de desorganizadas folhas soltas rabiscadas à mão e sob uma forte chuva de aplausos e de gargalhadas, que Joaquim Chissano, o autor da obra “Vidas, Lugares e Tempos”, iniciou a sua intervenção na passada terça-feira no anti-teatro da Universidade ‘A Politécnica’, em Maputo.
O espaço revelou-se demasiado exíguo para albergar tanta gente. A expressão ‘não cabia nem mais um alfinete’ fez todo o sentido no anfiteatro de ‘A Politécnica’ no final da tarde de terça-feira. Houve mesmo quem dissesse que jamais vira tamanha aglomeração de pessoas em torno de um lançamento de um produto cultural. Rostos conhecidos não faltaram, com destaque para os camaradas de partido, alguns desde a primeira hora como Marcelino dos Santos, Óscar Monteiro ou Raimundo Pachinuapa, até os mais recentes, entre eles muitos ministros. Na mesa de honra sentou-se, entre o autor e o Magnífico Reitor, o anfitrião Lourenço do Rosário, o mais alto dignitário do Estado: Armando Emílio Guebuza.
Chissano não é um mito
Chissano mostrou-se à altura da plateia que tinha diante de si, ou não tivesse, durante mais de metade da sua vida, sido uma figura pública, habituado a lidar com grandes assistências. Falou de improviso, contou histórias, cantou, fez rir e chorar de comoção, algumas das pessoas que foi pedindo para se levantarem às quais quis agradecer pessoalmente o contributo para que a obra visse a luz do dia.
“Há uma pessoa que não se pode levantar porque está perto de Deus que é o meu pai. A minha mãe também não pôde vir devido à idade e às dificuldades de locomoção. O meu irmão mais velho também não está aqui, está com a minha mãe. À minha amada, ela chama-se Marcelina (muitos aplausos), peço que se levante porque há gente que não a conhece.” Marcelina agradeceu com um sereno gesto de cabeça.
Depois foi a vez dos filhos se erguerem para retribuir as palmas. “Estão lá todos na dedicatória”, rematou Chissano. Depois, empolgado pela numerosa e VIP plateia, continuou jocosamente: “Caros amigos, pode ser que alguns não sejam amigos, mas neste momento que estão aqui, seja qual for o seu motivo, neste momento são meus amigos. E mesmo quando entrarem na polémica são meus amigos.”
Os elogios, com laivos de modéstia, prosseguiram: “É uma imensa alegria ver tão numerosa assistência. Muitos vieram porque lhes agrada ouvir que há mais um moçambicano a trazer a público um documento para o conhecimento do passado da nossa sociedade. Estamos a gostar mais da nossa cultura. Vejo isso pela rádio e pela televisão, o que não acontecia antes mas infelizmente ainda conhecemos pouco a nossa cultura. Outros vieram receber em primeira mão matéria para a polémica.”
E, como os últimos são os primeiros, Guebuza foi o alvo final das loas: “Amigo e camarada Armando Emílio Guebuza. Ele é mais do que um escritor. Ele é o real criador porque é poeta. Um poeta excelente. Fico muito excitado quando leio os seus poemas. Porque os seus poemas também fazem apelo ao que somos e donde viemos.”
Duplamente Criativo
De seguida vieram os esclarecimentos que Pascoal Mocumbi, o apresentador da obra, não revelou “por desconhecimento”, disse Chissano. “Tentei neste livro repelir qualquer tentativa de mitificação da pessoa do Joaquim Alberto Chissano. Porque ele não é um mito e não quer ser mito. Procurei apresentá-lo como um animal racional, moçambicano, que vive no mesmo habitat com os outros semelhantes.”
Depois, defendeu-se atacando: “Deixei-me salientar em alguns pontos: primeiro, estou aberto a receber as vossas correcções onde haja erros ou mesmo distorções de factos, manterei apenas aquilo que for a minha percepção. Segundo, pedirei aos historiadores, aos analistas, que não se deixem confundir por uma fonte que possa ter várias interpretações. Essa pode ser superada por outras fontes, porque haverá uns que, no mesmo tempo em que eu vivi, possam ter vivido com maior profundidade os acontecimentos e eu não consegui conversar com todos. Portanto, o meu livro poderá ser usado apenas como uma das fontes possíveis, e não a fonte. Não digam nunca ‘até o Chissano diz’. Não sou o dono de toda a verdade. Não quero que a minha subjectividade se sobreponha à objectividade de quem terá a possibilidade de analisar com clareza os tempos de que falo no livro. Que os estudiosos aprofundem o que este livro apenas sugere. É o meu sincero desejo.”
Antes disso, já o camarada e amigo Pascoal Mocumbi – foi primeiro-ministro num dos governos de Chissano – havia apresentado “Vidas, Lugares e Tempos”. Num discurso gongórico, intitulado ‘Digressão sobre a Arte de Escrever”, começou por dizer que “a arte de escrever ou de dialogar connosco próprios, e às vezes com os outros não é fantasia. Também não é esconderijo. Mais ainda, não é para todos. Ai de nós se fôssemos todos escritores. O mundo seria uma catástrofe.”
Depois, colocando-se numa plataforma mais real, revelou: “(…) ao ler o livro “Vidas, Lugares e Tempos” dei-me conta de que eu próprio estava enganado ao pensar que conhecia o autor, pela simples circunstância de ter vivido e trabalhado durante muito tempo com ele. Contudo, reconheci que me faltava uma parte essencial na vida do ser humano Joaquim: os primeiros anos da sua vida, as circunstâncias e as condições em que viveu e cresceu, até ao momento em que a nossa convivência começou.
(…) Joaquim Chissano usa as suas habilidades literárias para nos revelar a sua origem e o caminho trilhado. Relata a sua vida e, ao mesmo tempo, descreve o ambiente, identifica as pessoas com quem interage e fala das actividades em que se envolve, analisando o que se passa à sua volta. O autor fálo com recurso a uma abordagem tal que cativa o leitor, levando-o a prosseguir a leitura, com evidente dificuldade de a interromper.”
(…) Para mim ele (Chissano) é duplamente criativo: criou o percurso da sua vida e recriou essa mesma vida, nas histórias narradas neste grandioso livro. Só assim procede o ser humano que bebeu, não apenas o leite materno, mas também a sabedoria que ilumina a maravilha patente na obra do Universo.”
Aqui ficam alguns trechos da obra “Vidas, Lugares e Tempos”
“É penoso constatar hoje que nessa altura já havia escritores moçambicanos famosos, tais como o José Craveirinha, que eram desconhecidos no Núcleo. Tal era a separação entre a Associação Africana e o Centro Associativo dos Negros resultante da cisão do Instituto Negrófilo que unira mulatos e pretos sob a designação de “negros”, orgulhosos da sua cultura moçambicana. Foi por isso que apesar de passar sempre em frente da porta do José Craveirinha a caminho da escola eu não o conheci como poeta senão quando eu já estava na Europa, ao lê-lo ao mesmo tempo que lia Kalungano (Marcelino dos Santos) e outros poetas das colónias portuguesas.”
“Uma dona de casa negra não podia ser como as brancas que “só sabiam fazer croché, pintar as unhas e cozinhar bolos. Tinha que saber fazer machamba, pilar, cozinhar a lenha, acarretar água à cabeça, varrer a casa, cuidar das crianças etc.”
“A propaganda colonial dizia que a independência significava a passagem do povo moçambicano da mão dos portugueses para a mão dos russos, comunistas. Porque a “Rússia” e outros países socialistas e comunistas apoiavam o princípio da independência dos povos.”
“O camarada José Luís Cabaço lembra-me muito bem desta realidade. Foi ele que em 1989 informa-me o que lhe acontecera havia mais de 36 anos. «Levei uma sova da minha tia por ter dado uma boleia na minha bicicleta a um pretinho. E esse pretinho era o camarada Chissano. Ó senhores!» E o pai de José Luís Cabaço, que hoje conheço, não é má pessoa. Não é racista. Naquela altura também não devia ser racista. Porque o seria a tia do José Luís? Era arrastada certamente pela crítica social.”
“Aqui, no bazar, passei num desses dias que andava pela baixa e verifiquei que o lado «não europeus» porque muito mais frequentado era menos limpo. Aproveitei a entrada de um indiano para o lado «Europeus» para eu também entrar. Não aconteceu nada porque não estava lá polícia nem um desses europeus malcriados. Mas estava preparado para ripostar se me interpelassem. «O indiano não é europeu». Os indianos eram discriminados também.”
“Fui à inspecção. Fui apurado em quase todos os exames. A minha fraqueza física seria superada com boa ginástica e boa alimentação da Força Aérea. Mas o defeito no olho foi o pretexto usado para me excluírem depois de terem descoberto que eu tinha ideias de voar duplamente. Queria ser piloto da Força Aérea, mas também ser médico.”
“Ao passar por aqui, despedi-me também, em pensamento, daquele senhor, cujo nome não me ficou na memória como ficou a alma dele, um senhor que das poupanças do seu magro salário comprara um rádio «Ponto Azul» a 5000 (cinco mil) escudos para ouvir os relatos de futebol de Portugal, aos sábados e aos domingos. Costumávamos ir lá ouvir, juntamente que outros pessoas que não tinham tão bons receptores ou que não tinham nenhum. Fartámo-nos de rir, naquele dia em que, quando Sporting perdeu contra o Benfica, ele esqueceu-se do preço do seu aparelho e o atirou ao chão para que não falasse mais.”
“Pelos americanos que apareciam com os navios mercantes no Porto de Lourenço Marques dir-se-ia que na América não havia racismo. Lembro-me de uma cena em que dois americanos, um negro e um branco, por embriagues, se meteram na briga. Quando chegou alguém para os separar e gritou chamando a polícia, os dois, a sangrar, preferiram abraçar-se e fugir da polícia como se fossem dois irmãos, dois irmãos amigos.”
“Em Moçambique tinha havido o Massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, no qual, em alguns minutos apenas, 600 pessoas foram mortas pelas autoridades portuguesas, pura e simplesmente por terem ido procurar saber da data ou do ano previsto para a Independência de Moçambique. Os portugueses tinham logrado esconder do povo moçambicano este trágico acontecimento.”
“Em Portugal, os brancos de Moçambique, embora mantendo o seu portuguesismo, sentiam um forte desejo de se distinguirem dos portugueses de Portugal. Começavam a procurar exibir uma cultura um tanto ao quanto diferente da dos portugueses. Falavam palavras soltas das línguas indígenas de Moçambique: Maningue, Famba, Shonguile, Tombazana, Shitaleka, Mufana, Suka, etc…”
“O Dr. Eduardo Mondlane recebera-nos e mim e ao Mocumbi logo na noite da sua chegada a Paris. Não me recordo nem do nome do hotel nem do quartier onde se deu o encontro. Só mantenho a imagem de uma conversa viva e excitante, ao longo da noite, interrompida pela necessidade de irmos apanhar o metro antes da sua última viagem a Sèvres. Ele é que não tinha sono. Para ele a noite tinha menos cinco horas por causa da diferença de fusos horários entre Nova Iorque e Paris.”
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