23 de abr. de 2011

A língua portuguesa venceu!

Por Vera Helena Amatti

"A música venceu", tema vitorioso da escola de samba Vai-Vai, de São Paulo, guarda mais afinidades com a realidade política e linguística brasileira do que se imagina. Há alguns meses, com a vitória de Dilma Rousseff para o palácio do Planalto, surgiu o debate sobre a flexão de gênero da palavra "presidente", que antecederia o nome da primeira mulher a ocupar o cargo no país. Presidente ou presidenta? Esperei algum tempo para responder à questão, pois ainda se impunha o continuum do tempo para entender a resposta da população, sempre co-autora das mudanças.

As duas formas encontram respaldo na maioria das gramáticas, mas, diga-se de passagem, gramáticas hoje em dia não são mais sinônimo de regras imutáveis. Apesar das discordâncias, penso ser mais elegante e discreta a designação "presidente" para ambos os sexos, sobretudo porque os sufixos derivados de verbos no infinitivo, como pedir, solicitar e cantar são facilmente flexionados como pedinte, solicitante, requerente e cantante. Quem governa é governante, e o cargo de governanta designa profissão respeitável, porém subalterna e alternativa linguística diferenciada para quem exerce a função de gerir uma casa, um bem particular, diferente da cidade, estado ou país, de caráter público. Fosse Dilma presidenta, sua administração estaria restrita à residência em Brasília. Portanto, as estratégias de marketing para diferenciar Dilma de outros presidentes do sexo masculino esbarram no decoro do cargo que ocupa.

O trinado cafona


Na tentativa de popularizar o termo "presidenta", assistimos ao lamentável episódio de Marta Suplicy, no plenário do Senado, interromper o presidente da casa, José Sarney, em horário de trabalho – sim, as sessões para debate e aprovação de projetos das quais participam os parlamentares são atividades-fim e apartes para a correção do vernáculo poderiam ocorrer em outro momento – e corrigi-lo, em tom de repreensão: "Pela ordem, presidente. É presidenta, não presidente", ao que teve de escutar calada a réplica balizada do professor e escritor, mais afiado na língua que na ética: "Estou preferindo a forma francesa, le président", e deu por encerrada a discussão, embora o registro do ocorrido tenha ganhado a cobertura de mídia pretendida pela sexóloga senadora.

Ocorre que nem tudo acontece como nos sonhos mirabolantes dos marqueteiros: nenhuma emissora séria de TV ou rádio, jornal ou revista, site na internet ou mesmo o mundo acadêmico tem utilizado a forma esdrúxula "presidenta". O sucesso da simplicidade melódica prevaleceu sobre o trinado cafona dos interessados em destacar o sexo feminino como trunfo para o bom governante que, como bom profissional, não precisa afirmar seu gênero.

Um inimigo mais poderoso

Ao contrário, como revanche, a língua escancara a preferência política de quem a quer manipular: Quer conhecer um petista? É aquele que no bar, com o nó da gravata frouxo, se refere a Dilma como "presidenta". É evidente também que o fato de muitos jornalistas escreverem ou falarem "presidente" pode ser decorrente apenas de ordem superior de seus veículos, mas isso faz parte da profissão e do mistério que guardam todas as línguas, elas encobrem desejos e frustrações, mas sempre revelam o enunciador no subtexto.

Quando o maestro João Carlos Martins afirmou que a máxima "a música venceu" era seu mote preferido, o "pé-quente" de sua trajetória, ele o fez ao constatar que apesar de todos os obstáculos na vida, a música em todas as suas formas foi a companheira fiel e constante em seu sucesso pessoal e profissional, a ponto de ser maior do que ele mesmo. Penso que a glosa de todos os brasileiros e portugueses é "a língua portuguesa venceu", pois por mais que a violentem e assaltem, e a torçam para os mais diversos interesses, ela reage e mostra sua força e verdade. 
Qualquer grupo político-partidário que quiser enfrentar o povo do Brasil, de Portugal ou de outros países lusófonos, vai sempre ter que encarar um inimigo muito mais poderoso: a língua portuguesa!

[TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA]

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